segunda-feira, 16 de outubro de 2006

A Casa de Asterion

Para Marta Mosquera Eastman

E a rainha deu à luz um filho que se chamou Asterion.

APOLODORO: Biblioteca, III, I.

Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de casa, mas também é verdade que as suas portas (cujo número é infinito*) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas femininas nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por isso mesmo, encontrará uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma parecida no Egito.) Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Asterion, seja um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não existe uma fechadura? Mesmo porque, num entardecer, pisei na rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. O sol já se tinha posto mas o desvalido pranto de um menino e as preces rudes do povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, se prosternava; alguns se encarapitavam na estilóbata do templo das Tochas, outros juntavam pedras. Algum deles, creio, se ocultou no mar. Não é em vão que uma rainha foi minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que o queira minha modéstia. O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço em meu espírito, capacitado para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos. Claro que não me faltam distrações. Como o carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até cair no chão, estonteado. Oculto-me à sombra duma cisterna ou à volta de um corredor e divirto-me com que me busquem. Há terraços donde me deixo cair, até ensangüentar-me. A qualquer hora posso fazer que estou dormindo, com os olhos cerrados e a respiração contida. (às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de todos os brinquedos, o que prefiro é o do outro Asterion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes referências, lhe digo "Agora voltamos à encruzilhada anterior" ou "Agora desembocamos em outro pátio" ou "Bem dizia eu que te agradaria este pequeno canal" ou "Agora vais ver uma cisterna que se encheu de areia" ou "Já vais ver como o porão se bifurca". Às vezes me engano e rimo-nos os dois, amavelmente. Não tenho pensado apenas nesses brinquedos; tenho também meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são catorze (são infinitos) os pesebres, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, de tanto andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi o templo das Tochas e o mar. Não entendi isso até uma visão noturna me revelar que também são catorze (infinitos) os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: em cima, o intrincado sol; embaixo, Asterion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro. A cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para buscá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde então a solidão não me magoa, porque sei que meu redentor vive e que por fim me levantará do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? - me pergunto. Será um touro, ou um homem? Será talvez um touro com cara de homem? ou será como eu? O sol da manhã rebrilhou na espada de bronze, já não restava qualquer vestígio de sangue. - Acreditarás, Ariadne? - disse Teseu. - O minotauro apenas se defendeu.- Fim -(*) O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Asterion, esse adjetivo numeral valha por infinitos.

Jorge Luis Borges

________________________

X

NOTAS MINHAS:

  • in O Aleph (1949). No posfácio Borges afirma que o conto acima foi inspirado por este quadro do pintor inglês George Frederic Watts.
  • Clique no título do post para ler o texto no original.

domingo, 15 de outubro de 2006

sexta-feira, 29 de setembro de 2006

uma árvore caducifólia

duas plantas cujo nome nao sei
e um pe de morango.
alem do vidro o cedro.
as folhas exaustas desverdeiam-se,
posso contar os minutos.
o delirio do talo eh de naufragos,
a vida regredindo progressivamente. o talo pensa que suspirar talvez seja oportuno.
chega entao o momento antecipado.
o talo se perde de si,
sua base estala calada
como a membrana do ovo cru. o mundo gira.
tudo eh silencio.
a existencia eh inodora.
cai. descansa na ponta dos garfos da grama. o quietude da morte eh insuportavel. m,m 28.09.06

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

saudade

Pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão pretoEu to voltando...Põe meia dúzia de brahma pra gelar, muda a roupa de camaEu to voltando...Leva o chinelo pra sala de jantarQue é lá mesmo que a mala eu vou largarQuero te abraçar, pode se perfumar porque eu to voltando!Dá uma geral, faz um bom defumador, enche a casa de florQue eu to voltando...Pega uma praia, aproveita, ta calor, vai pegando uma corQue eu to voltando...Faz um cabelo bonito pra eu notar que eu só quero mesmo éDespentearQuero te agarrar, pode se preparar porque eu to voltandoPõe pra tocar na vitrola aquele som, estréia uma camisolaEu to voltando...Dá folga pra empregada, manda a criançada pra casa da avóQue eu to voltando...Diz que eu só volto amanhã se alguém chamarTelefone não deixa nem tocarQuero lá lá lá ia, lá iá lá lá iá la ia,Porque eu to voltando!!!!

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

stankelbein

Senhoras e senhores, conhecam o Stankelbein. Esta coisa "linda", que nao consegue se decidir se eh aranha ou mosquito (nao faz teia, nao pica), eh um dos poucos insetos noruegueses. E eu o odeio com todas as minhas forcas. O mais legal eh que agora, no fim do verao, volta e meia aparece um aqui em casa, dancando sapateado na parede (serio, da pra ouvir o bicho sapateando todo desengoncado) - ai eu grito, corro, e o pobre do ze tem que ir fazer o papel de exterminador. Prefiro 15 baratas a um stankelbein.

sábado, 13 de maio de 2006

eu amo lobos

Em resposta ao post de lena, no link abaixo -- lenoca tenho tantos comentarios que so a gente sentando com uma garrafa de tequila em dezembro, quando eu for ai. A maioria deles esta naquele post que escrevi sobre voce ha alguns anos atras. Nao vejo voce tao "distante" dos valores da familia, penso apenas que voce tem uma visao mais realista e menos idealista do que nos todos. Sim, meu pai fala trezentas linguas, mas voce lembra bem como isso comecou, nao? E eu me joguei nessa porque GOSTO de linguas, e tenho essa cara de pau desmedida. Alias, minha coragem e independecia nao sao coragem e independencia. Sao pura cara de pau. A cada vez que sai de casa, sai morrendo de medo, com vontade de engatar a re e me esconder no quarto de bina. Mas aprendi COM VOCE que a gente tem que enfrentar ainda com mais forca aquilo que nos amedronta. Eu tambem sou ligada aa familia, minha atitude se difere da sua por causa das experiencias que tive com seres humanos em geral. Eu decidi que vou tomar conta do afeto de quem toma conta do meu afeto. E isso nao tem nada a ver com frequencia de visitas, telefonemas etc. E quanto ao drama, voce eh a mais dramatica da casa. So que criou uma barreira por nao gostar de drama e nao querer ser como nos, e escolhe guardar - quando o assunto eh a SUA felicidade, porque se se trata da dos outros voce pula com unhas e dentes e os defende ate a morte - tudo no seu coracaozinho, nao falar, nao rodar a baiana, so bater a porta, se trancar e esperar que as coisas se resolvam ou passam a ser menos importantes. O problema eh que elas nao tendem a ficar menos importantes, mas a inchar ate voce nao aguentar mais e ter uma crise de choro porque alguem esqueceu o sapato na sala. Esse negocio de familia eh dificil. E essa fase pela qual voce esta passando é a mais dificil de todas. Adolescencia perto eh bobagem. Agora eh que voce vai exatamente descobrir quem voce eh independente de sua familia. Agora eh que voce vai suar e sofrer para entrar nesse mundo adulto, que eh muito diferente do "mundo adulto" de quando voce fez 18 anos e podia beber, onde tudo era permissao... Agora o prazo de validade do "o que vou ser quando crescer" se aproxima a cavalgadas, e eh isso que joga a gente num turbilhao a la Cazuza, Hamlet e companhAia. Mas sabe aquela vozinha irracional e besta que suspira aas vezes no seu ouvido que no final tudo vai dar certo? Bem, mesmo que nenhuma teoria behaviorista ou formula matematica possa prova-lo, ela esta certa. E ela esta certa porque voce eh uma pessoa decente, amiga, que se preocupa com os outros - te aceitem eles ou nao. E voce da duro e luta pelas coisas que voce quer. E isso eh o que importa. Eh isso que importa para mim, para mamae, para papai. Nada mais. Eu vou adorar ter sobrinhos e alguem pra me emprestar dinheiro. (Adivinha quem esta chorando?) Helena Roberta Márcia de Alvarenga y Algodon! Augusto Marcielo Paco es tu hijo!!!

eu amo lobos

Em resposta ao post de lena, no link acima -- lenoca tenho tantos comentarios que so a gente sentando com uma garrafa de tequila em dezembro, quando eu for ai. A maioria deles esta naquele post que escrevi sobre voce ha alguns anos atras. Nao vejo voce tao "distante" dos valores da familia, penso apenas que voce tem uma visao mais realista e menos idealista do que nos todos. Sim, meu pai fala trezentas linguas, mas voce lembra bem como isso comecou, nao? E eu me joguei nessa porque GOSTO de linguas, e tenho essa cara de pau desmedida. Alias, minha coragem e independecia nao sao coragem e independencia. Sao pura cara de pau. A cada vez que sai de casa, sai morrendo de medo, com vontade de engatar a re e me esconder no quarto de bina. Mas aprendi COM VOCE que a gente tem que enfrentar ainda com mais forca aquilo que nos amedronta. Eu tambem sou ligada aa familia, minha atitude se difere da sua por causa das experiencias que tive com seres humanos em geral. Eu decidi que vou tomar conta do afeto de quem toma conta do meu afeto. E isso nao tem nada a ver com frequencia de visitas, telefonemas etc. E quanto ao drama, voce eh a mais dramatica da casa. So que criou uma barreira por nao gostar de drama e nao querer ser como nos, e escolhe guardar - quando o assunto eh a SUA felicidade, porque se se trata da dos outros voce pula com unhas e dentes e os defende ate a morte - tudo no seu coracaozinho, nao falar, nao rodar a baiana, so bater a porta, se trancar e esperar que as coisas se resolvam ou passam a ser menos importantes. O problema eh que elas nao tendem a ficar menos importantes, mas a inchar ate voce nao aguentar mais e ter uma crise de choro porque alguem esqueceu o sapato na sala. Esse negocio de familia eh dificil. E essa fase pela qual voce esta passando é a mais dificil de todas. Adolescencia perto eh bobagem. Agora eh que voce vai exatamente descobrir quem voce eh independente de sua familia. Agora eh que voce vai suar e sofrer para entrar nesse mundo adulto, que eh muito diferente do "mundo adulto" de quando voce fez 18 anos e podia beber, onde tudo era permissao... Agora o prazo de validade do "o que vou ser quando crescer" se aproxima a cavalgadas, e eh isso que joga a gente num turbilhao a la Cazuza, Hamlet e companhAia. Mas sabe aquela vozinha irracional e besta que suspira aas vezes no seu ouvido que no final tudo vai dar certo? Bem, mesmo que nenhuma teoria behaviorista ou formula matematica possa prova-lo, ela esta certa. E ela esta certa porque voce eh uma pessoa decente, amiga, que se preocupa com os outros - te aceitem eles ou nao. E voce da duro e luta pelas coisas que voce quer. E isso eh o que importa. Eh isso que importa para mim, para mamae, para papai. Nada mais. Eu vou adorar ter sobrinhos e alguem pra me emprestar dinheiro. (Adivinha quem esta chorando?) Helena Roberta Márcia de Alvarenga y Algodon! Augusto Marcielo Paco es tu hijo!!!